Yemanjá Hackeada

Ao navegar por essa página, você encontrará uma variedade de recursos interativos e oportunidades de edição, projetadas para colocar você no centro da ação. Queremos que se sinta parte integrante deste espaço virtual, onde suas opiniões e contribuições são valorizadas.

• Para uma melhor navegação entenda o que cada cor significa na interação com esse texto.

  • Pop up versões edições

  • Hiperlink de imagem

  • Textos retirados da matéria

  • Links externos

Acessar Site
MDN

Yemanjá Hackeada

A que e a quem servem os atuais mecanismos de captura de imagens em festas populares e religiosas?

• Para uma melhor navegação entenda o que cada cor significa na interação com esse texto.

  • Pop up versões edições

  • Hiperlink de imagem

  • Textos retirados da matéria

  • Links externos

• Devido à intimidação sofrida pelo fotógrafo, o autor do texto e a revista ceLesTe optaram por não reproduzir a imagem publicada no dia 2/2 no Instagram.

Dia de Yemanjá é culto, festa, aberta e ancestral

A que e a quem estão servindo as imagens de pessoas negras capturadas por fotógrafos/as brancos/as em Salvador?

e a quem servem os atuais mecanismos de captura de imagens em festas populares e religiosas?

O Dia de Yemanjá são muitos, quiçá, todos. Dois de Fevereiro leva seu nome por razões históricas lidas e relidas por diversas vozes e, em cada uma, se manifesta a genialidade das narrativas. Certa vez Hori, artista, designer e fundador do Estúdio Agá, uma espécie de ateliê aberto fundamental para a cena artista (in)dependente de Salvador e da Bahia, realizou a coleção Oferenda, com dezessete obras ainda disponíveis para aquisição. Nelas a fé foi abordada como fluxo contínuo. Algo que é muito menos lugar, do que filosofia, história, destino. Na ocasião, fui convidado a escrever poucas linhas para cada uma das obras. Sobre aquela que deu título à coleção, escrevi: Tudo refunda em cada corpo um terreiro. Os pescadores a paz semeiam e os barcos de flores se regam. O corpo atravessa séculos e faz a festa Dela porque as glórias das nossas conquistas são infindas. Ainda hoje na terra criam irregulares fatias. No mar, o povo é dono e tudo é nada. Me livra do que não é meu (…)”. diante do horror que as lentes promovem nesse dia tão profano quanto sagrado, se faz necessário reformular quem é dono de que. Aliás, a quem pertence a imagem desse “povo”. 

Uma parcela da população já se encontra familiarizada com as inúmeras discussões acerca da venda dos nossos dados para big techs e como isso afeta e afetará cada vez mais a nossa autonomia, privacidade e segurança. Contudo, é importante preponderar que ainda temos muitas raizes danosas para lidar do lado de cá, no mundo palpável e real. Não se trata de equivaler as duas dimensões, mas voltar o olhar para o aqui e agora, camada que por vezes pode ser mais direta e cotidianamente trabalhada sem intermédio de uma legislação, grande empresa ou Termos de Uso. Boa fé, bom senso e comunicação com o território são elementos que não dependem de assinaturas e resolvem muitas coisas. 

*Esse trecho foi retirado da versão final

No último dia 2 de fevereiro, Rafael Ramos, diretor e fotógrafo negro, cis gênero, nascido e baseado em Salvador, Bahia, publicou no seu Instagram no último dia 2 de fevereiro, uma fotografia acompanhada da seguinte fotografia contendo a seguinte legenda: 

A foto, que não pôde ser reproduzida aqui, foi suficientemente impactante e direta a ponto de fomentar uma discussão que tomou conta de parte significativa da classe artística da cidade. Entre os perfis que compartilharam a publicação de Ramos, estava @pedrotourinho, Secretário Municipal de Cultura e Turismo. A fotografia feita e publicada por Ramos não acompanha esse texto porque a existência de uma foto que proponha uma discussão sobre  limites que precisam ser impostos à branquitude já é um absurdo para a mesma. Com todo seu poderio desvairado, a branquitude (sempre tão bem sucedida e quando mal intencionado) encontra formas elegantes, silenciosas e datadas de agir para lembrar-nos que a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. 

Uma legenda impactante, direta e capaz de fomentar uma discussão que tomou conta de parte significativa da classe artística da cidade. Entre os perfis que compartilharam a publicação de Ramos, estava @pedrotourinho, Secretário Municipal de Cultura e Turismo.  No dia 3 de fevereiro, aproximadamente 22:30 hrs, @rafaramxs (re)fez a publicação já sem mostrar os rostos dos/das fotógrafas/os e com uma outra legenda na qual consta: 

Ramos aborda no seu texto incisivo pontos importantíssimos. De início, somos levados/as a refletir que, além da agressividade contida na imagem, há a violência das possíveis distorções que o olhar, as técnicas e a finalidade de uma fotografia branca pode causar à narrativa de uma celebração histórica  fruto da cultura afro baiana (portanto negra). Em seguida Ramos destaca que coerência  é importante mesmo em meio a uma guerra de narrativas. Ou seja, para denunciar o mal uso da fotografia que expõe alguém sem sua autorização, não necessariamente  é necessário usar do mesmo veneno. O fotógrafo também inicia uma suposição acerca da possível crise estética que decorre do despreparo e não-pertencimento. Algo que discutiremos mais à frente com o depoimento do também fotógrafo baiano Renan Benedito.  Por fim, Rafael Ramos traça um paralelo entre a mercantilização dos corpos negros e da imagem de tais corpos. Pontos absolutamente cruciais para pensarmos  a relação entre arte e sociedade. Mais especificamente a relação entre liberdade artística e como essa liberdade pode ser sustentada na negação da outra: a das pessoas/culturas/narrativas retratadas. Do seu texto vale destacar:

“A recusa do uso de uma imagem de um indivíduo, e a liberdade da escolha para tal, é ponto central nessa discussão sobre a captura do outro. Quem pode escolher dizer não?”  

Desautorização do uso de imagem

A mesma questão é brilhantemente abordada por Adriano Machado, fotógrafo baiano nascido em Feira de Santana, região metropolitana de Salvador e residente de Alagoinhas, interior da Bahia, em junho de 2023 do ano passado  Machado apresentou ao público soteropolitano pela primeira vez a obra “I bet you must be tired” na exposição “Letra [] Imagem” curada por Fábio Gatti e João Oliveira, apresentada em junho de 2023 no Goethe Institute de Salvador. Machado nos apresenta uma “proposta de ser desautorizado a usar imagens feitas por mim mesmo” porque entende que, embora o artista seja autor do registro, ele não é dono da imagem de outrem. No seu site, Machado apresenta sua pesquisa da seguinte forma: 

 “O que acontece quando o fotografado desautoriza o fotógrafo e o impede de exibir suas imagens? 

Neste trabalho, continuo investigando o gesto de emancipação. E na tentativa de tentar responder uma negativa de uso de uma imagem já feita, crio um documento que me impede de exibir a imagem. O desejo, ferramenta dita como inerente ao olhar fotográfico, é colocado em disputa e desestabilizado nessa contra-imagem.

A ideia do termo de autorização do uso de imagem é invertida para se tornar um termo de desautorização de seu, onde o artista/fotógrafo perde ou abre mão de seu poder de domínio sobre a imagem”. Quem deve poder dizer não?

 A questão pesquisada, trabalhada e levantada por Machado toma uma proporção ainda maior quando pensamos, por exemplo, nas variações que a noção de liberdade adquire dentro da internet através dos movimentos   midialivrismo (oposição ao monopólio midiático) e ciberativista (perspectiva mais radical que discute os direitos fundamentais em geral), uma discussão que tem como base o mundo virtual mas que produz efeitos diretos na realidade palpável. Aliás, isso é algo que precisamos retomar e ter sempre em mente: o mundo virtual ou mais ou menos abstrato e suas permissões não existem indissociáveis do mundo que habitamos. Ou seja, inclusive a liberdade artística (conceito abstrato e virtual) encontra bases e barreiras no mundo palpável.

Texto: Fotografar pessoas negras, ou seja, se fotografar, é sempre um lugar de duplicidade – para além da discussão que a fotografia produz um duplo. As imagens de pessoas negras muitas vezes estão num lugar em falso: de um lado, temos todo um histórico de corpo fotografável, sujeito a ser capturado pelo olhar externo, do outro lado existiu uma incerta ausência de imagens produzidas por nós mesmos ou a pouca autoprodução de imagens fotográficas (?). Essa relação, de estar próximo da imagem e ao mesmo tempo longe de sua produção (aliada ao fato de a fotografia ser uma forte ferramenta colonizadora) produziu durante muito tempo, especialmente na Bahia, olhares e modos de leitura da figura das pessoas racializadas na foto. Esses modos de leitura se alicerçam em fetiche, contemplação, regras de composição, fragmentos do cotidiano, se confundem e entrelaçam problemas que volta e meia surgem para mim, principalmente relacionados a autonomia da criatividade, o vício do olhar sobre o corpo como base de produção e a necessidade de quebra das normas de um tradicional modo de construir a imagem. Mas, entre conversas, venho pensando o quanto é necessário romper com os modos de leitura das nossas imagens e suas cartilhas que sempre as colocam como objeto sobre uma mesa subjetivamente arrumada…

Fotografar pessoas negras, ou seja, se fotografar, é sempre um lugar de duplicidade – para além da discussão que a fotografia produz um duplo. As imagens de pessoas negras muitas vezes estão num lugar em falso: de um lado, temos todo um histórico de corpo fotografável, sujeito a ser capturado pelo olhar externo, do outro lado existiu uma incerta ausência de imagens produzidas por nós mesmos ou a pouca autoprodução de imagens fotográficas (?). Essa relação, de estar próximo da imagem e ao mesmo tempo longe de sua produção (aliada ao fato de a fotografia ser uma forte ferramenta colonizadora) produziu durante muito tempo, especialmente na Bahia, olhares e modos de leitura da figura das pessoas racializadas na foto. Esses modos de leitura se alicerçam em fetiche, contemplação, regras de composição, fragmentos do cotidiano, se confundem e entrelaçam problemas que volta e meia surgem para mim, principalmente relacionados a autonomia da criatividade, o vício do olhar sobre o corpo como base de produção e a necessidade de quebra das normas de um tradicional modo de construir a imagem. Mas, entre conversas, venho pensando o quanto é necessário romper com os modos de leitura das nossas imagens e suas cartilhas que sempre as colocam como objeto sobre uma mesa subjetivamente arrumada…
.
Fotos:
Estudos sobre natureza-morta n°20
Estudos sobre natureza-morta n°21

O artigo “Foto Mídia Ninja: O Uso da Assinatura Coletiva na Internet”, de Nathália Schneider e Jonária França da Silva, nas questões levantadas por Nathália Schneider e Jonária França da Silva, da Universidade Federal de Santa Maria, no artigo “FOTO MÍDIA NINJA: O USO DA ASSINATURA COLETIVA NA INTERNET”, publicado por em ocasião do 3º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade,. No artigo, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/563/2019/09/3-18.pdf publicado em 2015, Schneider e Silva partem do traz um estudo de caso da postura adotada pela Mídia Ninja em meio às manifestações de junho de 2013 para “entender a relação entre a postura a favor da livre circulação de informação e conhecimento em oposição à propriedade intelectual”. Apresentando conceitos como “midialivrismo” (oposição ao monopólio midiático) e “ciberativista” (perspectiva mais radical que discute os direitos fundamentais em geral). Fábio Malini, co-autor do livro “A internet e a rua: ciberativismo e mobilizacão nas redes sociais”, afirma que “ambos (midialivrismo e ciberativismo) reivindicam outra economia política dos meios, em que a propriedade dos meios deve ser comum, isto é, que a cooperação na produção social de conteúdos midiáticos seja regida por uma estrutura decisória coletiva da sociedade civil e por um direito de autor que permita que os conteúdos circulem livremente pela sociedade”. De volta ao artigo de Nathália Schneider e Jonária França da Silva, temos a seguinte abordagem: No artigo consta que: “o conteúdo que a Ninja produziu nas Jornadas de Junho foi amplamente divulgado na internet e também virou manchete em jornais internacionais como New York Times, Wall Street Journal e The Guardian. Fotos que foram visualizadas por diferentes culturas e países, transmissões ao vivo através de um celular que foi acompanhado por milhares, textos traduzidos em inglês, espanhol e francês. Todos os direitos reservados à Mídia Ninja? Não, todos os direitos reservados a todos. O material produzido pela Ninja é da humanidade, para circular na internet, ser compartilhado, remixado e virar meme, pois conforme ideologias dos integrantes da Ninja, todo o conhecimento deveria ser público e de livre acesso”. A pergunta apresentada no texto-legenda de Rafael Ramos se mostra cada vez mais relevante: “Quem pode escolher dizer não?”

A liberdade de dizer não 

Como estamos pensando, através da internet e da tecnologia a segurança, privacidade e liberdade de quem não quer ter sua imagem divulgada? Diante de tanto avanço, onde está a coragem escancarada representada por Adriano Machado ao propor que propõe uma desautorização do uso da fotografia feita por ele mesmo? Essa é uma questão ética, tão individual quanto coletiva que precede grandes mudanças tecnologias e até mesmo as prenuncia. Afinal, antes de pensarmos em como podemos abalar as fortunas injustas dos mandatários detentores dos  grandes meios e plataformas de comunicação, precisamos pensar em como está o “chão do mundo”, as pessoas que encontramos nas ruas trabalhando, vivendo, dançando, passando. Ou seja, ao que parece, independente da liberdade ensaiada pela Mídia Ninja e demais grupos midialivristas ou ciberativistas, precisamos ainda nos movimentar no sentido contrário a outra alienação: quem sustenta essa liberdade? Quem pode exercê-la? 

Ainda não sendo integrantes de nenhum movimento, fotografos e fotografas invadem os arredores da Casa de Yemanjá, no dia Dela, e capturam momentos de maior ou menos intimidade sem autorização, licença, conhecimento ou sensibilidade para tanto. Ainda o fazem atendendo a uma demanda de mercado, o que é gravíssimo.S Mas seria diferente se defendessem que “todos os direitos reservados a todos”? Creio existir razões suficientes para sabermos que não. Justamente porque temos as tais raizes danosas como, por exemplo, aquela que resulta na representante da crise estética e ética das artes visuais na contemporaneidade: a incapacidade de reconhecer que existem diferentes termômetros, permissões, relações em diferentes situações, áreas, contextos e manifestações culturais, religiosas, estéticas e filosóficas no Brasil. 

Precisamos enquanto nação e classe artística entender que a relação que gregos, cristãos e demais grupos religiosos têm com a imagem é completamente diferente da relação que as diferentes nações de candomblé e umbanda têm com a construção e uso das imagens de orixás. Não se pode utilizar da mesma lógica. Há artistas, como o também baiano Ayrson Heráclito, que pede autorização ao seu terreiro para criar uma representação imagética de um orixá/energia. Dito isso, nos atentemos para a possível complexidade de alguns assuntos e a necessidade de abordá-los (ou não) com outra perspectiva. Uma mais ligada à vida cotidiana e menos a uma luta mais ou menos etérea e contraditoriamente materialista. 

Quem chega ao Dia de Yemanjá, no Rio Vermelho, Salvador, Bahia, precisa entender que não é imediato o processo de registrar um momento tão importante. Há ali o encontro não-dicotômico entre festa e ritual, privacidade e partilha, sossego e celebração, rigor e liberdade. Há pessoas em transe e nunca sem a devida autorização, se pode fotografar um ritual de candomblé. Nunca! Há pessoas em absoluta confissão de graças, desejos e intimidades. Há pessoas em um estado de espírito raro. Mas não há nunca, em nenhum milésimo de segundo em qualquer milímetro daquele chão, a libertinagem e o desrespeito ao que há de supremo. Afinal, há um pacto verdadeiramente coletivo porque profundamente ancestral e cultural.

Também em seu Instagram, Renan Benedito, também fotógrafo e diretor soteropolitano em franca ascensão do seu reconhecimento se posicionou-se da seguinte forma: 

No relato de Renan, alguns pontos merecem destaque: a possível ignorância de quem está fotografando em relação às práticas cotidianas (ou não) das quais aquele momento específico e espetacular é resultado; a possível busca/necessidade de alcançar o “hype” como algo que necessariamente dificulta a compreensão dos processos, sejam eles artísticos, culturais, históricos e políticos que podem ser (em alguns casos precisam ser) abordados para tratar da festa. Esse último ponto é especialmente relevante porque denuncia uma crise tanto estética quanto ética. E crise estética não corresponde a uma afirmação contra a beleza das fotografias feitas.. Muito pelo contrário, a maioria sao razoavelmente bonitas. Contudo, são apenas isso. Não colaboram em quase nada como registros, como dados que possam levar a uma leitura mais complexa da realidade. Ou uma leitura mais real que seja.  A questão central é que em sua maioria são apenas belezas capturadas. Ou seja,  não colaboram em quase nada enquanto registros ou dados que possam levar a uma leitura mais complexa da história, da estética ou da própria realidade desse dia que é muito mais do que uma festa A questão central é que em sua maioria são apenas belezas capturadas. Ou seja, não colaboram em quase nada enquanto registros ou dados que possam levar a uma leitura mais complexa da história, da estética ou da própria realidade desse dia que é muito mais do que uma festa. 

Adriano Machado, fotógrafo baiano nascido em Feira de Santana, região metropolitana de Salvador e residente de Alagoinhas, interior da Bahia, em junho do ano passado apresentou ao público pela primeira vez a obra “I bet you must be tired” na exposição “Letra [] Imagem” curada por Fábio Gatti e João Oliveira, apresentada em junho de 2023 no Goethe Institute de Salvador. Machado nos apresenta uma “proposta de ser desautorizado a usar imagens feitas por mim mesmo” porque entende que, embora o artista seja autor do registro, ele não é dono da imagem de outrem. A questão pesquisada, trabalhada e levantada por Machado toma uma proporção ainda maior quando pensamos, por exemplo, nas questões levantadas por  Nathália Schneider e Jonária França da Silva, da Universidade Federal de Santa Maria, no artigo “FOTO MÍDIA NINJA: O USO DA ASSINATURA COLETIVA NA INTERNET”, publicado em ocasião do 3º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade. No artigo, https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/563/2019/09/3-18.pdf publicado em 2015, Schneider e Silva partem do estudo de caso da postura apertada pela Mídia Ninja em meio às manifestações de junho de 2013 para “entender a relação entre a postura a favor da livre circulação de informação e conhecimento em oposição à propriedade intelectual”. Apresentando conceitos como “midialivrismo” (oposição ao monopólio midiático) e “ciberativista” (perspectiva mais radical que discute os direitos fundamentais em geral).Fábio Malini, co-autor do livro “A internet e a rua: ciberativismo e mobilizacão nas redes sociais”, afirma que “ambos (midialivrismo e ciberativismo) reivindicam outra economia política dos meios, em que a propriedade dos meios deve ser comum, isto é, que a cooperação na produção social de conteúdos midiáticos seja regida por uma estrutura decisória coletiva da sociedade civil e por um direito de autor que permita que os conteúdos circulem livremente pela sociedade”. De volta ao artigo de Nathália Schneider e Jonária França da Silva, temos a seguinte abordagem: “o conteúdo que a Ninja produziu nas Jornadas de Junho foi amplamente divulgado na internet e também virou manchete em jornais internacionais como New York Times, Wall Street Journal e The Guardian. Fotos que foram visualizadas por diferentes culturas e países, transmissões ao vivo através de um celular que foi acompanhado por milhares, textos traduzidos em inglês, espanhol e francês. Todos os direitos reservados a Mídia Ninja? Não, todos os direitos reservados a todos. O material produzido pela Ninja é da humanidade, para circular na internet, ser compartilhado, remixado e virar meme, pois conforme ideologias dos integrantes da Ninja, todo o conhecimento deveria ser público e de livre acesso”. Nesse cenário de busca incessante e irrestrita por uma narrativa específica de liberdade, onde se encontra o direito de exercer a liberdade para dizer não? Como estamos pensando, através da internet e da tecnologia a segurança, privacidade e liberdade de quem não quer ter sua imagem divulgada? Diante de tanto avanço, onde está a coragem representada por Adriano Machado que propõe uma desautorização do uso da fotografia feita por ele mesmo? Essa é uma questão ética, tão individual quanto coletiva que precede grandes mudanças tecnologias e até mesmo as prenuncia. Afinal, antes de pensarmos em como podemos abalar as fortunas injustas dos mandatários detentores dos  grandes meios e plataformas de comunicação, precisamos pensar em como está o “chão do mundo”, as pessoas que encontramos nas ruas trabalhando, vivendo, dançando, passando. Ou seja, ao que parece, independente da liberdade ensaiada pela Mídia Ninja e demais grupos midialivristas ou ciberativistas, precisamos ainda nos movimentar no sentido contrário a outra alienação: quem sustenta essa liberdade? Quem pode exercê-la? Ainda não sendo integrantes de nenhum movimento, fotografos e fotografas invadem os arredores da Casa de Yemanjá, no dia Dela, e capturam momentos de maior ou menos intimidade sem autorização, licença, conhecimento ou sensibilidade para tanto. Ainda o fazem atendendo a uma demanda de mercado, o que é gravíssimo. Mas seria diferente se defendessem que “todos os direitos reservados a todos”? Creio existir razões suficientes para sabermos que não. Justamente porque temos as tais raizes danosas como, por exemplo, aquela que resulta na representante da crise estética e ética das artes visuais na contemporaneidade: a incapacidade de reconhecer que existem diferentes termômetros, permissões, relações em diferentes situações, áreas, contextos e manifestações culturais, religiosas, estéticas e filosóficas no Brasil. Precisamos enquanto nação e classe artística entender que a relação que gregos, cristãos e demais grupos religiosos têm com a imagem é completamente diferente da relação que as diferentes nações de candomblé e umbanda têm com a construção e uso das imagens de orixás. Não se pode utilizar da mesma lógica. Há artistas, como o também baiano Ayrson Heráclito, que pede autorização ao seu terreiro para criar uma representação imagética de um orixá/energia. Dito isso, nos atentemos para a possível complexidade de alguns assuntos e a necessidade de abordá-los (ou não) com outra perspectiva. Uma mais ligada à vida cotidiana e menos a uma luta mais ou menos etérea e contraditoriamente materialista. Quem chega ao Dia de Yemanjá, no Rio Vermelho, Salvador, Bahia, precisa entender que não é imediato o processo de registrar um momento tão importante. Há ali o encontro não-dicotômico entre festa e ritual, privacidade e partilha, sossego e celebração, rigor e liberdade. Há pessoas em transe e nunca sem a devida autorização, se pode fotografar um ritual de candomblé. Nunca! Há pessoas em absoluta confissão de graças, desejos e intimidades. Há pessoas em um estado de espírito raro. Mas não há nunca, em nenhum milésimo de segundo em qualquer milímetro daquele chão, a libertinagem e o desrespeito ao que há de supremo. 

Comunicação com o território

Se a fotografia envolve escuta, diálogo, pertencimento e registro, por exemplo, a mulher vestida de branco com guias, lenços e turbantes, por exemplo, não será tão somente a personificação da baiana de acarajé ou de qualquer outra imagem generalista presente no inconsciente coletivo. Se a fotografia envolver escuta, diálogo, pertencimento, respeito e registro, ela terá nome, sobrenome e, quiçá, seja esse o título da obra, como faz  a também baiana Helen Salomão, artista visual multidisciplinar que atua no audiovisual como fotógrafa, diretora e DOP. Salomão, conversa previamente com as pessoas que ela possivelmente registre por meio através da fotografia, não na intenção profissional de uma direção, mas na intenção humana de encontro, o pacto, a comunhão. Como parte da sua ética, a fotógrafa envia as fotos feitas para as pessoas presentes nelas e, em caso de torná-las públicas, pede autorização. 

Sim, essa instância da tão maldita burocracia é também responsável pela segurança, autonomia e privacidade que tanto queremos assegurar no embate com as big techs por exemplo. Aliás, essa é uma discussão com a qual uma parcela significativa da classe artística, sobretudo artistas visuais, se encontra familiarizada. Para além da venda dos nossos dados para big techs, há uma preocupação relacionada a como isso afeta e afetará cada vez mais a nossa autonomia, privacidade, segurança e liberdade artística. Há i relevante debate sobre Inteligência Artificial e seus roubos. Contudo, é importante preponderar que ainda temos muitas raízes danosas para lidar do lado de cá, no mundo palpável e real. 

Não se trata de equivaler as duas dimensões, mas voltar o olhar para o aqui e agora, camada que por vezes pode ser mais direta e cotidianamente trabalhada através de boa fé, bom senso e comunicação com o território sem que seja necessário recorrermos ao intermédio de uma legislação, grande empresa ou Termos de Uso. Embora tenha se mostrado cada vez mais difícil assegurar liberdade sem jurisdição, sobretudo o de direito à privacidade em meio a tantas capturas dos nossos dados e imagens sem que tenhamos conhecimento do real destino.   

A maior Parte daqueles/as profissionais que assediaram o nobre senhor muito possivelmente acredita piamente em valores democráticos, apoiam a liberdade religiosa e até podem se dizer antirracistas (ou apoiadores/as da causa). Contudo, temos fatos históricos que precedem ideias, não importa quão valorosas e admiráveis sejam. Aliás, um dos fatos que não podemos ignorar é justamente o seguinte: aqueles/as fotógrafos/as muito possivelmente estavam ali também com o objetivo de vender seu trabalho. Ou seja, atender uma demanda do mercado da arte, da publicidade, do fotojornalismo, enfim, da sociedade que de diferentes formas demanda, pede, clica e paga por essas imagens. Portanto, precisamos discutir as tendências fetichistas do mercado e da sociedade no que se refere à retratação de corpos negros. Além disso, pensar, como bem pontuou Rafael Lemos, para onde vão essas fotografias e como isso exemplifica uma relação social hierárquica e violenta. 

No seu texto-legenda, Ramos propõe: “cite grandes/clássicos nomes negros da arte visual da Bahia, majoritariamente suas obras estarão no acervo de galeristas brancos. O contrário é impensável. Assim como a cena fotografada, ao contrário, também é”. Ou seja, também é impensável que seis pessoas negras apontem câmeras fotográficas para uma pessoa branca em meio a qualquer situação, sobretudo após um momento de culto. Por quê? 

Obviamente É óbvio que nem todas as problemáticas aqui apresentadas são fundamentalmente geradas por artistas. Mas todas passam por quem clica .É parte da responsabilidade e da ética entender quão equivocado é o seu modus operandi numa determinada em dada situação.  Não deve haver espaço para a estupida leitura de que “agora não pode nada”. Afinal, aqui cito nomes de artistas (cuja maioria absoluta infelizmente é masculina, mea culpa) justamente para mostrar que existem mentes conscientes que desenvolvem trabalhos à altura da complexidade que é registrar corpos negros, sobretudo no Dia de Yemanjá.

Definitivamente É uma equação complexa que requer um debate contínuo. De fato, não é fácil tecer essas pontes ou elaborar uma forma de autorização ou desautorização do uso da imagem, mas também não é justo ter sua imagem utilizada sabe-se lá por quem, porquê ou por quanto. Há algo supremo e inegociável: não se pode invadir, por qualquer razão que seja, parte de algo que a mente não alcança em compreensão. A Arte e a Beleza não são tudo. Atrás e através do que se vê, existem mundos. 

Entre 13 de janeiro e 05 de março de 2023, no antigo Palacete das Artes, foram exibidas obras adquiridas pelo Banco do Nordeste. Entre os/as artistas selecionadas/os estavam justamente Adriano Machado, Ani Ganzala, Glicéria Tupinambá, Helen Salomão, lyá Boaventura, JAMEX, Kauam Pereira, Tiago Sant’Ana. A performer Val Souza também participou da exposição com sua rica pesquisa sobre como a presença, cultura, estética e performance de mulheres negras periféricas vendedoras (ou não) de latinha ocupam as instituições culturais elitistas. Não à toa, entre 9 nove artistas cujas obras foram adquiridas pelo Banco, 5 cinco são mulheres, 4 quatro delas negras e 1 uma indígena. Entre as mulheres, 4 cis e 1 trans. Os homens presentes são todos negros. Eram, portanto, 8 oito pessoas negras e 1 uma iindígena. Para abrilhantar a discussão e continuarmos infinitamente refletindo sobre, a obra de autoria de Jamex adquirida pelo Banco tem como título a frase que também se encontra escrita em letras garrafais na obra: IMAGEM É PODER

A que e a quem estão servindo as imagens de pessoas negras capturadas por fotografos/as brancos em Salvador? A que e a quem está servindo o modus operandi através do qual tais imagens tem sido capturadas? A que e a quem está servindo a rota do dinheiro criada a sustentada por essas/nossas imagens?

Coincidentemente ou não, também no dia 2 de fevereiro, Dia de Yemanjá, Jamex, que é um  jovem pintor neo expressionista baiano autodidata, postou no seu Instagram um trecho específico de um documentário sobre Miles Davis no qual se lê “para continuar criando, tem que se comprometer com a mudança”. Seja uma mudança na postura artística, seja o comprometimento com a mudança política, econômica e cultural da forma como a Arte existe na sociedade. 

O Dia de Yemanjá são muitos, quiçá, todos. Dois de Fevereiro leva seu nome por razões históricas lidas e relidas por diversas vozes e, em cada uma, se manifesta a genialidade das narrativas. Em agosto do ano passado, Hori, artista, designer e fundador do Estúdio Agá, uma espécie de ateliê aberto fundamental para a cena artística (in)dependente de Salvador e da Bahia, realizou a coleção Oferenda. Nela a fé foi abordada como fluxo contínuo. Algo que é menos lugar do que filosofia, história, destino. Na ocasião, fui convidado a escrever poucas linhas para cada uma das obras. Para aquela que deu título à coleção, escrevi: Tudo refunda em cada corpo um terreiro. Os pescadores a paz semeiam e os barcos de flores se regam. O corpo atravessa séculos e faz a festa Dela porque as glórias das nossas conquistas são infindas. Ainda hoje na terra criam irregulares fatias. No mar, o povo é dono e tudo é nada. Me livra do que não é meu. O que for pra ser (e já é), peço que sua maré nos traga. Oferenda!”. 

A frase “me livra do que não é meu” foi adotada por Hori como merecedora de destaque e estampada na entrada do Estúdio Agá durante o período de exposição das obras. Contudo, diante do horror que as lentes promovem neste dia tão profano quanto sagrado, faz-se necessário reformular o sentido dessa frase e reavaliar quem é dono/a de quê. Digo, a quem pertence a imagem desse “povo”? 

Esse texto faz parte da minha residência na Celeste e, por princípio, busca a abertura. Ou seja, a discussão, como o texto, não está perto do fim. Existem muitos pontos a serem abordados e discutidos. Há, por exemplo, a questão da apropriação da imagem de corpos negros pela branquitude (e leia-se mercado da arte também). Aqui é relevante tratar da relação do mundo que alcanço, a tecnologia e aquilo que ela nos permite alcançar. Contudo, não podemos negligenciar os/as artistas que por vezes encontram nessa data uma chance de vender uma fotografia, aumentar seu portfólio ou simplesmente realizar desejos artísticos, experimentar. Portanto, faz-se necessário ainda discutir formas diferentes de abordagem que sejam baseadas no respeito a ambas as liberdades: a do/da artista  e a da pessoa que está sendo registrada. Além isso, é fundamental, sobretudo no caso da celebração em questão, traçar pontes mais profundas com o espaço e as pessoas. Isso é tão imprescindível quanto a arte. Afinal “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Dando continuidade às citações, o artista plástico Jamex, também baiano, postou no seu Instagram um trecho do documentário ___ sobre Miles Davis

 De fato, não é fácil tecer essas pontes ou elaborar uma forma de desautorização do uso da imagem. Também não é fácil ter sua imagem utilizada sabe-se lá por quem, porquê ou por quanto. E aqui não trato de nem determino as intenções. Creio ser contundente o foco na produção de sentido e efeitos. Vejo aproximações entre as opressões todas e sei que todos os setores precisam se repensar e reorganizar para agir de forma mais coerente, inteligente e decente possível. Podemos seguir os exemplos aqui dados ou criar outros. Mas há algo inegociável:  não se pode invadir, por qualquer razão que seja, parte de algo que a mente não alcança em compreensão. A Arte e a Beleza não são tudo. Atrás e através do que se vê, existem mundos. Nos versos do também baiano, Caetano Veloso, ouvimos Maria Bethânia emancipar: 
“Seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
Não tenho escolha, careta, vou descartar…”

Em que/quem se pautam as noções de liberdade quando tratamos de tecnologias?