Refazenda do cinema como instrumento de soberania audiovisual

  • Sophia Faustino

“Assim como retomamos, também refazemos”: a arte ativista de Olinda Yawar Tupinambá analisada a partir de três filmes

Conheci o trabalho de Yawar pouco depois de sua premiação na 2ª edição da Chamada VoA para Artistas Mulheres e Pessoas Não Binárias, quando passei a integrar o coletivo feminista Vozes Agudas, que organizou essa chamada nacional no biênio de 2022/23, a fim de ampliar a visibilidade de coletivos e artistas emergentes fora dos circuitos consagrados da arte contemporânea. Foi a partir da premiação e do contato com o trabalho que este texto começou a ser escrito. 

Hoje, Olinda Yawar Tupinambá é uma das integrantes da exposição Ka’a Pûera: Nós Somos Pássaros Que Andam, no pavilhão Hãhãwpuá, da Bienal de Veneza. No folder disponibilizado online, a cineasta comenta seu filme Equilíbrio (2020-2024): “A terra representa a mãe da humanidade, a mesma que gera vida e que um dia nos levará de volta, e de novo transforma a energia em comida para outros seres. Essa é a magia do equilíbrio que consiste na existência das espécies: cuidar deste planeta, interagindo respeitosamente com os outros seres vivos, é a única maneira de tornar-se realmente civilizado”.

Still do vídeo de divulgação da Fundação Bienal de São Paulo. Olinda Yawar com sua obra Equilíbrio (2020-24) apresentada na Bienal de Veneza, 2024

VIOLÊNCIA EPISTÊMICA
O cinema, enquanto técnica concebida na Europa do fim do século 19, inaugurou certos modos de ver, construir narrativas, captar e capturar imagens. Mais ainda, o uso da linguagem documental pelo cinema apresentava – e, em incontáveis casos, ainda apresenta – exemplos violentos das miradas de dominação de corpos e territórios de povos originários, a exemplo das ficcionalizações presentes no filme tido, nos moldes eurocêntricos, como o primeiro longa-metragem documental de cunho etnográfico, Nanook, o Esquimó (1922). Tais visões se constituem enquanto tecnologias da ordem da violência epistêmica, segundo o que levanta Clarissa Diniz no artigo Street Fight, Vingança e Guerra: Artistas Indígenas para além do “Produzir ou Morrer” (2020), em que há a alteração e (quando não a extinção) dos significados que diferentes representações podem ter para seus povos de origem; algo que desvaloriza a auto-representação por parte de sujeitos dissidentes dos padrões ocidentais. Ou mesmo inviabiliza suas possibilidades.

Desse modo, quando Olinda Yawar Tupinambá se define enquanto jornalista, documentarista e cineasta, até mesmo antes da adjetivação de artista, existe um embate direto com essa transmissão de valores do cinema aliado às visões coloniais – no sentido que nos fala Françoise Vergès, da justiça epistêmica. Num espaço diferente, que transforma energias, que transfere cuidado. Afinal, o gênero documentário exigiria daqueles que com ele trabalham um posicionamento demarcado diante de suas estruturas formadoras. A apropriação de bens e técnicas estrangeiras sempre foi estratégia de enfrentamento do Outro, e é nesse sentido que Yawar opta pela refazenda dessa tecnologia da imagem como instrumento de soberania audiovisual. 

Na produção Retomar para Existir (2015), documentário pelo qual Yawar obteve o grau de bacharelado em comunicação, reconhecemos seu trabalho de pesquisa voltado ao ativismo e às preocupações com a manutenção e reconstrução da memória sobre os Tupinambá. Nesse filme, a artista apresenta a trajetória de retomada da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu (Pau Brasil, BA) em uma interlocução com a história do importante representante da luta indígena no Brasil e figura fundamental na recuperação daquela terra, Cacique Nailton Muniz Pataxó. Em montagem quase paratática de registros de cerimônias, trechos de entrevistas, sessões oficiais de órgãos públicos, fotografias, manchetes de jornal e outros documentos, aprendemos sobre essa história de lutas que remontam à década de 1980 e são concretizadas em 2012, com a conquista completa da reserva.

NARRATIVAS NEGOCIADAS

Pelas tecnologias a priori envoltas em parâmetros ocidentais, ela desenvolve narrativas e representações que, ao mesmo tempo, demonstram as problemáticas dos assuntos geralmente abordados por essas máquinas – como silenciamentos e estereótipos perversos – e reverte-os a partir de um contraplano, que parte daquelas mesmas imagens. Com isso, Olinda Tupinambá realiza um movimento duplo: ao mesmo tempo que negocia a tradução de narrativas, planta armadilhas sutis; ao mesmo tempo que luta incansavelmente por possibilidades de sobrevivência e resistência, devolve o poder da imagem e da tela sob os olhos de todos. É nesse sentido que a preservação e divulgação da memória do território e do povo Pataxó Hã-hã-hãe é reforçada com a mensagem: “A luta dos Pataxó também é sua”.

Em sua linguagem, Yawar mistura mito, performance, documentário e ficção e funde um material que serve a um projeto político maior, de ativismo, de retomada da voz e de redirecionamento do olhar para sua terra e seu povo. É a partir da sua ibirapema-cinema que são constituídos seus processos de criação.

Com o tempo, essa linguagem documental aposta mais e mais em recursos do cinema e da videoarte, sem abandonar seus objetivos do início de carreira. Na transformação de Olinda Yawar Tupinambá em Kaapora, no filme homônimo lançado em 2020 durante a exposição Véxoa: Nós Sabemos, o sonho e o chamado do espectador à realidade estão dispostos lado a lado. 

Série Kaapora (2020), filme digital, 1920x1080px

A partir de uma caminhada pela terra, Olinda Yawar (enquanto a personagem ela-mesma) apresenta o que poderíamos entender como mote, como mensagem que é matéria estruturante dessa produção: os indígenas nascem de suas terras e sempre voltam para elas. As realidades mudam ao longo da história, é evidente. Mas os impactos e as dizimações residem na mesma invasão do capital colonial e exploratório, representado nas cenas de queimadas e de devastação das matas e rios. Nos processos de retomada, porém, recuperam-se as relações de afeto e espírito com a terra. Nesse terreno, a cosmovisão indígena como lente permite à artista processos de transmutação ficcional, que a levam de si mesma a entidades femininas, como Kaapora – entidade presente também no filme da Bienal – ou Cabocla Jurema, que encenam de igual para igual com o jabuti Xerimbabo (companheiro incluído nos créditos por seu trabalho de atuação), com as frutas, raízes e galhos. Seu discurso é construído na primeira pessoa do plural, um “nós” que possui alteridades visíveis, mas que habita e pertence a uma mesma (e diferente em cada torrão) terra-irmã. 

CINEMA COMO TECNOLOGIA DE PROTEÇÃO

Em O Parto, filme exposto na mostra Histórias Indígenas do Masp em 2023, o ato de parir a mandioca, a banana-da-terra, a abóbora e suas demais crias é intercalado com o nascimento de sua câmera Canon. Atordoada e extasiada, com suor no rosto, interpretando o momento imediatamente seguinte ao ato de dar à vida, Olinda Tupinambá muda rapidamente de feição, nos encara e sorri. Em um misto de prazer, ironia e provocação. Como quem nos captura naquela armadilha, ela traduz pelos olhos, com os filhos nos braços: fazer cinema é como maternar, é mais uma das várias formas de criar, de fazer e relacionar-se com a vida.

Em Kaapora, a realidade-espírito e a realidade tal qual a enxergamos se misturam, se confrontam e se complementam. Pela ficção e pelo sonho há o chamado de cuidado da natureza, para o retorno dos espíritos. Pelo cuidado coletivo, os espíritos retornam, retomam e refazem. Assim, a narrativa do filme revela sua função primeira, de chamado à defesa do parente-território. É nesse sentido que Kaapora e a mãe de O Parto podem existir ainda em outro lugar, enquanto porta-vozes de denúncia das violências do território ou de aceno para o projeto social do qual a artista é gestora desde 2018, o Projeto Kaapora. 

A apresentação do Projeto é dada em ação e transformação pela comunidade da TI Caramuru Paraguassu, sua já mencionada terra natal, das áreas de pastagem. Trata-se de um berçário e refúgio da vida silvestre que conserva e restaura 2,5 hectares de Mata Atlântica. É assim que o cinema de Yawar opera: como tecnologia de proteção, gestão e gestação da terra.

Os trabalhos da comunicadora possuem uma dimensão pedagógica e formativa, ativista, ambientalista e, sobretudo, criadora. Não há, nesses epítetos, qualquer tipo de contradição. As circunstâncias de um trabalho artístico e cinematográfico ativista, que ficcionaliza e comunica na mesma intensidade, desenvolvidos não só por Olinda Yawar Tupinambá, mas por uma rede de mulheres indígenas do audiovisual, é um projeto ético e estético – dois termos que, como nos ensina Paulo Freire, coexistem, indissociavelmente, na raiz de uma educação libertadora, num projeto de emancipação política e, enfim, de retomada e refazenda.