“UMA COISA É TU ESTUDAR O DECOLONIAL, OUTRA COISA É TU SER O DECOLONIAL”

  • Laryssa Machada

A curadora Sandra Benites e a artista Xadalu Tupã Jekupé conversam com Laryssa Machada, artista residente da Celeste, sobre a proposição de novas estruturas de pensamento nas artes, na educação, nas instituições 

No início de junho, nos encontramos, à sombra de uma árvore, num parque no Rio de Janeiro. Sandra Benites, pesquisadora e curadora guarani Nhandeva, e Xadalu Tupã Jekupé, artista indígena que usa elementos da serigrafia, pintura e fotografia que estava na cidade para uma residência no Museu Nacional de Belas Artes e uma pesquisa nos arquivos do Instituto Histórico Brasileiro, acervo que guarda a memória brasileira do ponto de vista do colonizador. Nesta conversa, falamos de vivências estéticas e realidades políticas. 

Laryssa Machada: A barreira entre arte e ativismo é uma segmentação inútil de se fazer, se pensamos em criação indígena, né? Como vocês pensam isso?

Xadalu Tupã Jekupé: Vou falar um pouquinho do cotidiano de Tekoá, de quando eu morava na beira do rio e [de quando] a gente vem pro mundo ocidental, em que a arte está colocada em diversas gavetas, que é o jeito como o homem branco aprende as coisas da técnica e da pesquisa. Dentro do aprendizado na mata, é tudo integrado, tu vai aprendendo tudo ao mesmo tempo, mas de uma maneira mais lenta. Tu sabe o que é o pé no chão, o valor da terra, o artesanato, tu começa a ter as aulas orais, conversar com os mais velhos. E aí tu vai crescendo e evoluindo primeiro como pessoa, pra depois tu fazer a arte mesmo. O artivismo já é algo que é híbrido, juntamente com a arte, juntamente com a fé, juntamente com tudo que a gente faz. Depois, quando a gente chega na cidade e começa a entender um pouco da arte contemporânea, para nós é muito mais fácil, desde o nosso entendimento… Vai agregar o valor estético, que nunca vai ser maior que o valor espiritual ou cosmogônico. Às vezes, o pessoal olha e fala “ah, mas isso parece um desenho de criança”, porque a ideia do valor não está na estética, e sim na narrativa dentro das camadas – que são desvalorizadas na faculdade. Na faculdade é tudo “belo”. Esse artivismo já vem desde pequeno, mas trabalhado de outra forma, de tu se sentir parte do espaço. A gente vê os movimentos dentro das aldeias desse mesmo jeito, de ter uma visão muito mais cosmogônica, pra depois entrar o meio, que é a arte. 

Sandra Benites: Para nós, guaranis, por exemplo, como surgiu o mundo pra gente, inclusive esses desencontros, enquanto humano e enquanto não humano, as histórias dos urubus, das onças, ela vai aparecendo durante a caminhada da vida. Como você se relaciona com esses seres outros? Por exemplo, a história da Nhandesy, Nhanderu, em algum momento vai surgindo esse conflito entre duas pessoas e a partir disso vão surgindo outros seres, como animais, plantas. Dentro dessa cosmologia vão surgindo várias coisas. A Nhandesy chegou na encruzilhada e a partir daí ela se perdeu. Os acontecimentos de as mulheres engravidarem ou perderem filhos, e a ideia de superar isso, é a criatividade. O aprendizado que surge disso é outra criatividade para não cometer o mesmo equívoco. Essa narrativa fica como referência para qual caminho foi bom e qual não foi legal para criarmos outros pensamentos, outros movimentos, outras plantas. Então, essa ideia do artivismo não é uma coisa nova, ela surge nessa tentativa de superar, de criar, de repensar as coisas que constantemente acompanham a vida, as coisas da natureza. 

Respondendo mais diretamente, a gente não separa. Quando tem algum conflito, a gente mostra no mesmo objeto o pensamento poético da vida, mas também os conflitos que desmobilizam a comunidade. De uma aldeia, mas de outras também, como a questão da demarcação de terra. Então, não é apenas estético. Aí gera um conflito dos juruá acharem que isso não é arte, porque a gente não separa as coisas do real e da vivência. E também não tem a ver com o coletivo, tem a ver com o indivíduo. No pensamento ocidental, o artista envolve-se como uma pessoa, o pensamento de uma pessoa, por isso ele é muito considerado, muito reconhecido. O coletivo sempre é inferiorizado. 

LM: Como pensar a sustentabilidade dos artistas e profissionais das artes para além das regras do mercado hegemônico, reproduções do capitalismo?

XTJ: Eu acho que, à medida que as coisas foram evoluindo, o mercado foi absorvendo a arte indígena contemporânea, e ela começou a se movimentar também em direção ao mercado. Alguns artistas começaram a pensar nas suas comunidades ou em ajudar os seus que estão na cidade e automaticamente isso se torna um sistema profissional, onde se sabe que parte das obras pode ir para instituições, para galerias – e esse mercado absorve e torna dependentes os artistas que nele trabalham. No meu caso, comecei na arte urbana, na arte de rua, depois fui pra instituição e bem depois fui pra galeria, então demorei muito tempo pra ter essa remuneração. Acho que isso foi bom, porque entendi o dinheiro como uma ferramenta pra me ajudar e ajudar os outros, mas eu não estava apavorado pelo dinheiro, porque dificuldade a gente já passou muito tempo. Então sempre teve essa calma, que a Sandra falou, de saber, de aprender com o passado, com os nossos velhos. Que seja na floresta ou na cidade, os problemas ficam meio parecidos com as situações, porque os animais também já foram pessoas. Então acho que, quando tu vem desse tempo mais devagar, parece que a gente tá perdido, mas não tá, a gente tá ali, olhando… E não é qualquer coisa que vai te conquistar, normalmente é tu que vai conquistar as coisas. 

Eu acho que isso deveria ser uma praxe de todos os artistas, não só indígenas. Uma coisa assim, ó, um pouquinho desse dinheiro, 10%, 15%, para contratar a costureira lá da periferia, assim a gente consegue ajudar um pouco os que estão à nossa volta. O sistema trouxe esses artistas emergentes, mas falta preparação, porque, imagina, tu é uma pessoa que não tá acostumada com a cidade, tu cai na cidade trabalhando numa galeria, é muito brusco o movimento. Então, dentro do mercado da arte é importante, sim, estar nas instituições, estar na galeria, mas acho que tem que ter a consciência, isso a gente traz de casa, de saber compartilhar. Como o livro que a gente lançou agora há pouco, um livro bilíngue, guarani, pra criança, aí 10% (das vendas) vão pra aldeia. Vai juntando e no final do ano dá pra fazer muita coisa. Tu não é dono de tudo, entende? Tem grande parte da tua colaboração, mas tu tá te ajudando, te alimentando também. 

LM: E até porque, na produção de um trabalho de arte, dificilmente você vai produzir alguma coisa que veio só da sua cabeça, que você um belo dia acordou com uma ideia de outro planeta. São coisas que a gente aprendeu coletivamente, né?

XTJ: Como diz o Karaí Timóteo, as imagens se repetem de diferentes maneiras, tudo já existe. Não é tu criar coisa que não existe, tu tá só replicando da tua maneira. 

SB: Eu, enquanto curadora, procuro pensar nos artistas que trazem certos conflitos que não são muito fáceis de circular nesse mercado de arte. Então, procuro chamar os artistas que estão trazendo essas inquietações. E no objeto já tem essa representatividade do coletivo. Quando fiz a primeira exposição do Nhe’ẽ Se, em Brasília, busquei esses artistas que estão na margem, querendo trazer e visibilizar essas lutas. Chamo esses artistas como forma de apoiar, remuneradamente, essa pessoa e essa comunidade. É difícil trabalhos como o de Tamikuã Pataxó – que vive em São Paulo no meio da comunidade guarani – circularem, que é a construção de sua casa de forma sustentável, mas também artística, replantando, construindo uma lagoa para criar peixes numa comunidade em que o território é minúsculo. E ela também pinta. Acredito que nós também somos lideranças dessa causa, expondo coisas que não são fáceis, que mexem com nossas emoções, com nossas vidas, nossas histórias. 

LM: Às vezes, a gente pensa o sistema das artes como algo “fora”, mas é importante imaginar que somos esse sistema. Como você falou, “nós também somos líderes desse sistema”, estando dentro também se consegue deslocar esse sistema e fazer com que seja outro. Invariavelmente vai mudar, porque outras pessoas vão ser chamadas, outras coisas vão ser abordadas. Essa era um pouco da próxima pergunta, de como produzir outra educação visual, outras Histórias que vão estar nos livros didáticos. Arte e educação caminhando juntos. E vocês dois têm essa trajetória na educação…

XTJ: Acho que, atualmente, a instituição tem um papel bem mais potente, porque hoje temos trabalhadores do educativo – que acabam pegando a linguagem acadêmica, que é muito rebuscada e tentam sintetizar e transportar isso pras crianças (e pro público em geral). Esse pensamento decolonial de hoje é muito fruto do movimento artístico, muito mais do que da educação, na minha opinião. Mas foi uma forma de se apoiar, trabalhar juntamente com os artistas, porque as artes visuais nem eram muito pauta da educação e hoje estão muito próximas, até mesmo se confundindo – com o trabalho de sociologia, que é muito legal, de construir o cidadão. Então acho que se tenta trabalhar o processo de educação mais fundamentada, mas também tem um trabalho muito forte de reeducação do adulto – seja ele de qualquer classe, porque tem gente que tem oportunidade de estudar, mas acaba sendo ignorante.

SB: Eles não têm nenhuma noção de quem nós somos, eles se baseiam ainda nesses relatórios dos colonizadores que vieram aqui e invadiram, que estupraram as mulheres indígenas e nós somos fruto dessa miscigenação. Isso forma o Brasil. E a educação se baseia muito nisso, se isso não se romper, de modo geral, isso se torna uma estrutura. E essa estrutura é muito difícil de se romper. Por isso é importante a presença de indígenas nos espaços das artes. Por isso, também, eu tenho muito cuidado na hora de escolhê-lxs. Porque, na aldeia, não temos essa estrutura de museu, galeria… O nosso museu é o dia a dia, do que a gente vive, de plantar, pescar, conversar, fazer ritual, dançar. Aquilo é vivenciado, não é colocado em um objeto. Não estou criticando o museu, tem que estar lá, sim, mas tem que remunerar de acordo com o mercado.

LM: Sobre isso que a Sandra falou, acho que as práticas de transferência de conhecimento na aldeia são muito de memória viva, que os aprendizados vão acontecendo e sendo compartilhados no dia a dia. Às vezes, o museu existe na cidade também porque as pessoas não têm nem tempo de encontrar seus entes mais velhos para aprender… A arte indígena alimenta outros sistemas políticos, construindo uma educação visual pro futuro. Falando sobre as estruturas imperiais das artes, talvez a gente tivesse que chamar essas criações de outro nome, até porque está tão carregado de tantas coisas, estar nesses espaços. Mas também é um contraponto, contar outras histórias.

SB: Lembro que, quando estudava licenciatura, quando eu e os parentes discutíamos sobre a educação indígena, surgiram muitas ideias e alguns parentes falavam que era importante fazer uma estrutura diferente de um prédio – tinha uma aldeia que tinha um formato de tartaruga. Mas pra fazer uma escola em formato de tartaruga ia custar muito caro, então minha questão foi: não é apenas construir esse outro formato, e sim funcionar embaixo desse formato. Porque não adianta mudar a casa e o formato colonial continuar… É um exemplo talvez pra gente pensar a ocupação do museu, desses lugares imperiais: que a gente comece a mexer com essas narrativas. Talvez não possa fazer uma roda de conversa em volta da fogueira, mas é importante que a gente fale o que a gente quer, que a gente ocupe do nosso jeito. O Museu das Culturas Indígenas, por exemplo, de São Paulo, houve muitos encontros naquele lugar, de diferentes origens… Essa rede tem que acontecer, para que haja o diálogo. É uma reeducação mesmo. 

XTJ: E quando a gente diz mexer, é mexer tudo mesmo. Nessa residência agora que estou fazendo no Museu de Belas Artes, eu dei quatro aulas para mais de 60 funcionários – quatro turmas – sobre ocupação decolonial nos espaços. Esses funcionários são todos da limpeza, da segurança, os bombeiros, e todo mundo se sentiu parte daquilo. Em geral, essas pessoas não são visibilizadas dentro da instituição, então eles tiveram aulas sobre arte decolonial que normalmente só se dão dentro das universidades. 

SB: Pois é, parece que o museu só tem pesquisadores, artistas, mas essas outras pessoas também necessitam dessas informações.

XTJ: E sem elas o museu não abre. Eu sempre falava isso em todas as aulas. 

LM: Vamos chegando ao fim, que tá escurecendo aqui no parque. Vocês querem acrescentar alguma coisa? A residência da celeste vem desse lugar de crítica infraestrutural e acho que minha ideia era conversar com pessoas que já estão ativamente propondo novas estruturas e que assim as coisas já estão se movimentando.

XTJ: Eu queria deixar dito que o curador branco, acadêmico, ele tem que ter muito cuidado em querer questionar e classificar o indígena, o quilombola, ele tem que buscar consultar pessoas como a Sandra, a Vera Santana, que são pessoas que a gente se sente à vontade de ter a avaliação delas. Porque é muito normal dentro das instituições ter os curadores brancos que querem classificar sem saber a nossa história, sem saber de onde a gente veio, só porque eles pensam que estudaram o suficiente dentro da academia, mas dentro de Tekoá, dentro da comunidade, eles são só mais um vindo pra dar uma opinião de fora, de alguém que não viveu aquilo. Uma coisa é tu estudar o decolonial, outra coisa é tu ser o decolonial. 

SB: Sim, acho que só pra complementar sobre a estrutura do museu, que eu falei antes, sobre o formato da escola. Se não respeitar, no dia a dia, os rituais, o ciclo menstrual das mulheres, as práticas da comunidade, não adianta. Para nós, guarani, quando tem uma criança recém-nascida, as pessoas mais próximas, pai, irmão, também não comem carne vermelha, por exemplo, isso é algo que as escolas juruá têm dificuldade de entender. Entendo que fazer rituais, fogueira (dentro desses espaços), talvez não vá acontecer, mas é importante falar sobre eles. Como formação, como demanda, como pauta. E sobre o que eu queria deixar. Eu, como curadora, que fui a primeira indígena numa instituição, eu sempre tive o cuidado de buscar não trazer esses conflitos, de parentes disputarem entre si, como é essa perspectiva de mercado de arte, quem é mais caro, quem tem mais valor. Tento evitar isso, por isso procuro trazer mais coletivos. E também converso bastante com os artistas, eu expresso minhas preocupações de “olha, eu vou trazer fulano por causa desse trabalho”, para não haver essa hierarquia. Eu queria trazer mais artistas que são invisibilizados, com essas obras de arte que não atendem tanto ao mercado, mas que, pra nós, essa pessoa é muito importante na comunidade. Então, se eu tivesse mais condições, traria mais. Eu tento evitar essas disputas, sempre falo muito isso. E artistas indígenas que estão nesse caminho de luta mesmo também não estão vindo com esse olhar, mas o mercado tenta capturar, botar uns contra os outros. É bom que as instituições e os acadêmicos evitem isso, principalmente com as populações indígenas. Porque essas competições são adoecedoras, esse mundo da arte ocidental pode ser muito adoecedor.